quarta-feira, 3 de abril de 2013



Seboso


Não havia como prever quando viria. Embora mantivesse certa frequência, o dia em que voltaria era incerto. Acontecia sempre quando já haviam "esquecido" sua última visita. "Esquecido" porque não se tratava de uma visita comum, como a dos outros clientes, pois quando Seboso estava presente a casa ficava em alerta. Tão marcante era presença dele que, durante a semana seguinte, virava assunto das comadres da cozinha. A faxineira, uma mulherzinha espevitada, franzina, choramingava pra patroa, gesticulando em tom dramático  quando falava da última visita de Seboso. 
Fato é que, quando menos se esperava, do nada, a figura volumosa de Seboso já estava refestelada no meio do salão com a cara espetada no cardápio. Cento e tantos quilos passavam imperceptíveis pelo portão do restaurante, caminhando com uma rapidez invejável a muito atleta. Com a testa coberta de gotículas, adentrava o salão como em uma missão de vida ou morte. Tal qual monólito, assentava-se solidamente no lugar escolhido. Estabelecia um sítio para comer sossegado, sem ninguém para recriminá-lo na hora das refeições. O garçom observava a cadeira sobre a qual Seboso estava sentado e calculava o peso que cada uma das esguias pernas de madeira estaria suportando, constatando como eram resistentes. Quando ia atendê-lo, via que estava mais relaxado e lhe oferecia bebida. Além dela, Seboso aproveitava para pedir tudo que tinha direito. Começava com uma uma porção de yakisoba e uns dois temakis. Enquanto eram preparados, ia se servir do buffet de sushi. Aquelas rodinhas multicoloridas eram um sonho exótico de paladar, ao ponto de passar dias planejando e acalentando a ocasião de seu encontro com elas. 
Embora louco de fome, seboso sabia disfarçar bem sua paixão pela comida. Esperava na fila com paciência. Quem o visse se servindo com toda calma nunca imaginaria a avidez contida naquele corpanzil. Apenas um olhar mais atento perceberia um ar de seriedade além do normal na fisionomia de Seboso, um traço de severidade em seu caráter. 
Atrás do buffet, lado a lado, um grupo surreal de enroladores de sushi observava Seboso às espiadelas enquanto trabalhavam. Cada qual com a cabeça cingida por uma faixa com ideogramas que ignoravam o significado. Eram tão orientais que o chefe deles, um moreno de sobrenome alemão, se orgulhava  por saber contar até dez em japonês. O outro, um magrão de cabeça raspada, amigo de longa data do chefe, era o segundo mais importante do grupo. Muito contido, mas não ao ponto de deixar escapar rompantes de arrogância e pedantismo eventuais. Também era parente da patroa, e por isso todos lhe davam razão na roda de conversa fiada.  Havia também um baixinho idiota que se assemelhava a um barril. Expressava sua gratidão canina de ser aceito no grupo puxando o saco e divertindo-os às custas de outros. O menos bizarro era um rapaz de aparência serena, com um "yellow submarine" tatuado no antebraço. Certo é que  todos eles desprezavam aquele cliente, tanto que o apelido maldoso "Seboso" fora inventado por eles. O chefe o desprezava mais por afetação moral de puxa-saco da patroa, para quem Seboso não era bem-vindo; o magrão de cabeça raspada porque desprezava qualquer um que aparecesse na frente do buffet; o baixinho porque sempre concordava com o grupo; o yellow submarine porque se fazia de louco e ia na onda. Inocente, o cliente se servia sem suspeitar da maldade daqueles que preparavam a comida que punha no prato.
Seboso volta à mesa e senta para comer. Termina o primeiro prato de sushi. Chegam os temakis. Come os dois com voracidade e volta ao buffet. Quando o garçom entrega as porções de yakisoba, o cliente aproveita para pedir mais temakis. Termina o segundo prato de sushi. Chegam os temakis, até que, repleto, Seboso entra num estado de serenidade profunda. Folheia placidamente o cardápio, dissecando a descrição dos ingredientes prato por prato. Depois tira seu telefone do bolso e fica brincando num joguinho. 
Volta ao buffet novamente e serve-se de novo. Enquanto isso, da cozinha, a mulherzinha, a faxineira espevitava, com os olhos arregalados, espia Seboso pela fresta da porta que dá para o salão. Passa a mão pela fresta com um molho de chaves, sacudindo-o impacientemente para que algum garçom venha pegar. O baixinho idiota escuta o molho sacudindo e parte para buscá-lo. Nervosa, a mulherzinha lhe entrega logo as chaves dizendo:
"Tranca logo o banheiro!". 
O baixinho vai fazer o que a mulherzinha mandou, mas no caminho é chamado no salão e tem que atender a uma mesa.
Sem suspeitar de nada, Seboso sente que o laxante que tomara horas antes está prestes a fazer efeito. Volta à mesa depressa, larga o prato e toma a direção do sanitário. No caminho, prepara um biquinho para vomitar também. Momentos depois, sai do banheiro com uma ou outra nódoa na camiseta. Mais aliviado, pode continuar comendo.
Atendido o cliente que lhe chamou, o baixinho parte atarantado para cumprir sua missão de trancar o banheiro. Vê Seboso no salão e fica mais tranquilo. Só por descarga de consciência, dá uma olhada pela porta do banheiro, mas o estrago está feito. Dessa vez não deu tempo. 
A descrição do estado em que Seboso deixou vaso, pia e piso, deixa a mulherzinha quicando de histeria e soltando fumaça pela cabeça.






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